(Querida Daisy, que a poesia sempre coloque dobradiças nas retinas do dia a dia. Com carinho - Ricardo Flaitt)
O que dizer do “enxergador” do invisível e
dessa sua obra que mostra todo o seu lado devorador dos sabores da vida?
Depois de quase cinco meses como Livro de
Ricardo Flaitt nas mãos, revirando os silêncios encontrados que tanto falaram
comigo e me acostumando com as imagens criadas pela retina do autor, não sei se
ainda me sinto preparada para assumir tamanha responsabilidade de falar sobre
uma obra, que reflete tamanha sensibilidade e que já nos impacta desde o início
com a sua fuga do óbvio, com o seu olhar para as entrelinhas da vida e para o
encontro da grandiosidade das coisas pequenas.
Mas, contudo, é preciso falar, porque esse
livro não é daqueles que se lê e se esquece. Ricardo Flaitt, para mim, é um
domesticador não somente de silêncios, mas também de palavras e isso nos remete
obviamente a grandes ícones da poesia que se consagraram por usar a palavra
como material de carpintaria; claro que falo de Manoel de Barros e Autran
Dourado.
Confesso que minha queda por Barros é de
longe bem maior do que por Autran, e posso me explicar: é que Barros usa a
palavra como instrumentos de carpintaria de uma maneira acessível e
apaixonante, o que muito me lembrou nesses passos de Flaitt a forma como se
prestou a trabalhar as palavras.
Quero nesse meu espaço, pedir licença ao
Flaitt e também ao Barros, para assinalar as similaridades que eu encontrei em
suas obras no ofício de “poetar” o mundo. Muito me agrada essa sensibilidade do
olhar para a “pequenez” das coisas, aparentemente desprezadas, insignificantes
ou invisíveis, essa desconstrução da linguagem e a construção de uma
metalinguagem como procedimento de reflexão sobre o poético. Portanto, é nisso
que focarão minhas palavras.
Essa proposta de poesia vem sobre o olhar das
novas transformações literárias, favorecendo a criação de uma lírica cada vez
mais moderna, que acompanha os passos de um renovo nas estruturas poéticas,
criando um novo sentido e desdobrando o sujeito sob diferentes “eus” e sua forma de enxergar o mundo.
Vejo Flaitt como um “devorador” do mundo, que
utiliza a palavra como ferramenta para a reflexão sobre o poético e trazendo
assim uma nova linguagem. Toda essa construção é muito moderna, onde a poesia
se volta para si mesma, para sua própria linguagem que é a matéria que a
transforma em arte.
Como tal, a poesia criada
por Ricardo Flaitt, assim como a criada por Manoel de Barros, não se afasta
desses traços contemporâneos. É um tempo de usar a poesia para reflexão e de
auto-reflexão, que o poeta alcança, utilizando recursos como a metalinguística,
criando um estilo muito singular de composição da sua obra, prevalecendo o
“ludismo” da linguagem, o desdobramento do sujeito poético em diversos “eus”, a estética do fragmentário, e a
exaltação constante do “nada”, das coisas insignificantes, causando profundas
transformações na poesia moderna brasileira.
Assim, a palavra poética de Flaitt,
não está presa em enquadramentos de fórmulas prontas, pois, sendo poeta moderno,
prefere ser inovador e utilizar a linguagem que reflita também esse espírito.
Conduz a palavra de tal forma, que nem todo leitor está apto para decifrá-la, a
compreendê-la na grandiosidade de suas “pequenices”. Aqueles desgastados pelo
social, repleto de preocupações e sufocados com as repetições do dia-a-dia, talvez
não tenham a sensibilidade necessária para entender o falar de coisas que revelam
o “universo do chão”, do nada e do próprio ser.
Flaitt é um poeta que mesmo
orbitando uma metrópole, bate no peito o orgulho de ser do interior e como
todos os nascidos em seu vilarejo, carregam a “doença da insônia” que também provoca
o esquecimento e recorreu então à poesia para defender-se do esquecimento das
coisas. Sorte nossa então!
Outro ponto em comum entre
Flaitt e Barros é que ambos são poetas vivos e com uma poesia muito particular,
diria quase visceral, que remete sempre ao que a maioria não se importa em dar
importância e ao ofício de escrever.
E apesar de fazerem parte de
uma época moderna, sua poesia foge dos padrões estéticos e estilísticos da
literatura considerada moderna, pois a forma particular de conduzir a palavra
os faz ainda mais únicos, produzindo com a palavra imagens singulares, construtoras
de um mundo que a princípio, apenas o próprio autor enxergava e com tamanho
detalhe que por meio de poesia, nos faz ver com a mesma nitidez o que não
éramos capazes de avistar. Por isso os chamo de “carpinteiros” da palavra,
fazendo artesanato com ela, nesse ofício que reinventa o cotidiano e o próprio Ser.
Podemos perceber como Flaitt faz do uso da palavra um ofício, com alguns trechos
poéticos de sua obra “O domesticador de silêncios”:
Iniciei-me
para chuvas
[...]
Um
vento fluvial ricocheteou no mineral
Chegando
até minha pele
Repleta
de fungos e lodos.
Assim
chegaram-me líquidos
[...]
Flait, 2013, (Iniciei-me
pras chuvas) p. 21.
Ou como podemos observar
neste outro trecho:
Quando
meninoera, tempo que sol era apenasfera,
Pedi
ao pai um ferro de solda pra concertar dicionários.
Em
minha fábrica demendas.
[...]
Flait, 2013, (O ferro de
solda ou o metal de conjuminâncias) p. 23.
Esse seu tom poético logo
nos remete ao poema de Barros chamado “Escova”, em Memórias Inventadas:
Eu
tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando
osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam
sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles
homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor.
E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que
estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras.
[...]
Eu
queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das
palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades
remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as
palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros
sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha
escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto,
trancado, a escovar palavras. BARROS, 2008 p. 15 (Memórias
Inventadas).
Quando
Manoel de Barros afirma que escova as palavras para escutar o primeiro esgar,
significa dizer que ele lapida a palavra para estudá-la, já que era um
estudioso da palavra e de suas significâncias e sentido.
Ao
observar o trabalho dos paleontólogos, ele estabelece um paralelo metafórico
com aquilo que ele mesmo faz o que provoca um novo efeito de sentido no texto.
A ação de homens trabalhando, escovando ossos, a qual se insere no ser-evento
real da vida, remete o autor ao seu próprio trabalho de estudioso da palavra,
que também é árduo e delicado, à medida que ele próprio trabalha a palavra para
encontrar seus diversos sentidos.
E retornando à poesia de
Flaitt, encontramos similar posicionamento poético em diversos pontos de sua
obra, “O domesticador de Silêncios” para percebermos claramente que em sua
poesia é o lugar onde nascem as palavras em sua forma única, privilegiada, livres
dos enlaces convencionais, pelas combinações inesperadas que o poeta consegue
lhe emprestar. E o faz, porque é o seu ofício de usar a palavra como material
de carpintaria:
Dependuro dicionários na varanda
E
catraco marimbondos naspalavras
Pratrair
ferraduras nos conceitos
[...]
E
ficar fazendo curativo em significâncias.
Flait, 2013, (pracatracar) p.
57.
Ainda nesse sentido
encontramos em seu livro:
[...]
Em
minha oficina de inutilidades,
Invento
parafusos pratarraxar imagens,
Brinco
de parafusar o tempo,
[...]
Flait, 2013, (para (fuso) p.
83.
Continuamos a encontrar
trechos pertinentes, que nos remete ao ofício das mãos, que requer suor do
rosto, como o seguinte:
A
moendar lavras de palavras encravadas no pilão.
Flait, 2013, (Monjolelétrico)
p. 89.
Ou ainda mais:
[...]
Mas
o que tenho de mais-valia
É
coisa pequena, coisa de poesia
Que
rompe coaestação,
Que
sangra a margem do dia.
Flait,
2013, (Mais-valia) p. 93.
E mais pontual temos:
Marceneiro
velho quer construir o vazio:
Empunha
pensamentos ao invés de formões,
[...]
Recolhe
chuvas nos silêncios dos telhados
Engarrafa
fragmentos de solidão ao ver o mar,
Enterra,
em meio às molduras dos quadros,
As
perguntas que nunca mais vão lhe deixar.
[...]
Criam-se
farpas no sonho do marceneiro.
Abrem-se
fendas no nada que se desejou inteiro.
Flait, 2013, (Vazio de
marceneiro) p. 109.
Seguidamente
temos:
Arando os ventos
[...]
Desengaiolando gerúndios
Alimentando vírgulas
Transformando pontos em
reticências
[...]
Educando o traço dos
passos
Flait, 2013, (Visgo para
caleidoscópios ou gerundiando) p. 113.
Noutro
trecho do livro encontramos a poesia “Invertebramentos da palavra”:
Soletro minhas palavras
invertebradas
[...]
Recortando asas de
insetos e borboletas
Pra atingir os
invertebramentos da palavra
Pra ficar acumulando
sons de telhados,
Sentado em minha
escrivaninha,
[...]
Flait,
2013, (Invertebramentos da palavra) p. 27.
Assim, o poeta busca redimensionar o universo
das palavras, utilizando novos termos, des-contruindo
a gramática, recriando a palavra, dando-lhe a luz, trazendo-a para um novo
mundo. É por meio da manipulação da palavra que ele desconstrói o universo
inicial dela, para inseri-la em outro ou mesmo transformá-la noutro universo,
nesse seu trabalho de carpintaria da palavra.
Essas palavras se transformam morfo e
sintaticamente para um objetivo maior, libertam-se das amarras gramaticais para
construir-se em novas pontes a-gramaticais, destacando um novo sentido semântico
e até neológico, ultrapassando as percepções comuns, rompendo com a forma usual
da linguagem para criar um novo modo de ver e perceber as coisas, rompendo com
a coerência convencional visando novas lógicas em amplitude poética.
Esse é o dever do poeta
moderno, desfazer a palavra das amarras gramaticais que, em nada elevam a
poesia e enquadram a arte. Abraçar o ofício das palavras implica tomá-la em
estado natural e transformá-la em novos significados, criando novas
perspectivas de entendimento.
É preciso não gostar de sua
beleza óbvia apenas, ou seja, não prender-se ao seu formato denotativo, rígido,
que não causa qualquer emoção ao leitor e tem o principal objetivo apenas de
informar, de ser direta, seca, dicionarizada, mas sim, gostar da sua diferença,
do seu avesso, daquilo que não se mostra a menos que se vá buscar que podemos
traduzir por se apegar à linguagem marginal que se consegue com a lapidação
poética, as construções diferenciadas das regras, tudo que nasce desse labor e
foge dos padrões convencionais de leitura e escrita. Essa propensão pode ser
entendida como “a-gramaticar a vida”,
ou ainda, “aptidão a ser poeta”.
Ou seja, fazer um trabalho
inverso à regra, para alcançar a “desconstrução” e rejeitando o tido como
certo, para alcançar a “desorganização” do código oficial linguistico e criar
outro, particular, que possa traduzir as emoções e a visão do mundo, de uma maneira
que a forma denotativa jamais alcançaria.
A poesia moderna vem desestabilizar
a tradição literária, com o costume clássico de exaltar o belo, propondo novas
significâncias, buscando a beleza do cotidiano, no comum, abusando da
metalinguagem para instaurar os paradoxos, as dissonâncias, a nova forma do
Ser.
A poesia de Ricardo Flaitt
vem a representar de forma pungente e dedicada a poesia moderna, com seu olhar
aguçado sobre a simplicidade, e com seu labor sobre a forma, na constante
desconstrução da mesma, recriando-a, refazendo-a, realocando-a no mundo da
literatura, universo onde tudo cabe, todo é possível, inclusive romper com a
lógica do racional.
Percebemos que é pelos
desvios que se encontra a linguagem poética, é preciso criar atalhos do caminho
regrado, àquele que todos tomam, é preciso ser diferente dos demais para
encontrar as melhores coisas, ter as melhores surpresas pelo caminho.
Nesse “re/fazer” da
linguagem, Ricardo Flaitt muito nos faz lembrar também, Guimarães Rosa, no
“desarranjamento” das palavras, da ordem semântica e morfológica delas, criando
uma nova percepção do mundo poético. É a arte de poetar, transfazendo o mundo,
no estilo tão singular do poeta, que mal chegou e já vem deixando grandes
coisas pelo caminho e “dendagente”.