sábado, 13 de setembro de 2014

DOIS EM UM - Alice Ruiz


Alice Ruiz nos faz pensar que também podemos ser bons, nos convence a cada página que existe em algum lugar dentro de nós um poeta louco pra respirar e passear na sua “nuvem feliz”.
“Dois em um” é o que já foi chamado de “indispensável”. E tudo o que não se dispensa, deve-se ir em busca, não?. No entanto, difícil mesmo é encontrar, conseguir reunir toda a obra escrita da autora, pois muitas delas estão esgotadas e quem já possui seus exemplares raros, não pensa em abrir mão.
Nos cativa em “Dois em Um” sua criatividade alegre, leve, cheia de humor e reflexão. A temática feminista e feminina é recorrente nessa sua obra, que mesmo refletindo um período de uma época, ainda é comumente atual:
Tua mão
No meu seio
Sim não
Não sim
Não é assim
Que se mede
Um coração

Enchemos a vida de filhos
Que nos enchem a vida...
Outro me enche de esperança
E receios
Enquanto me incham
Os seios.

Hoje sou uma das coisas
Raras do planeta
Capaz de dar à vida
Tudo que ela tem de luz...
Tão rara
E como eu
Todas as sementes
Que o vento arranca de tudo
e atira no nada.


O ai
Quando um filho
                          cai


E agora Maria?
O amor acabou
A filha casou
O filho mudou
Teu homem foi pra vida...
E agora Maria?
Vai com as outras
Vai viver
Com a hipocondria.


Humilde
Para ser uma
Úmida
Para ser duas
Única
Para ser muitas.


Me quer igual
Qual mel
Qualquer.


Gotas
Caem em golpes
A terra sorve
Em grandes goles
Chuva
Que a pele não enxuga
Lágrima
A caminho de uma ruga
Água viva
Água vulva.


O que é o que é
Usada e abusa...
Amainada para mãe...
Ordenada e ordenhada...
Dá a luz e vive escondida...
Mal informada forma pessoas
Foi vocada a não ter vocações...
Inclinada por instinto só ao lar...
Econômica nada entende de economia.
Domingo dia do Senhor, não descansa...
Consumidora voraz é vorazmente consumida...
No dicionário figura fêmea do homem...
Produz pouco porque já reproduz e isso lhe basta...
As suas tentativas de participação recebem como intromissão...
Pode escolher entre o céu e o inferno
Mas a terra não
Essa é do sexo oposto.
Entrave para a liberdade masculina através das
Traves da obediência...
O futuro acaba junto com a beleza.
Se for grande é porque
Está detrás de um grande homem.
Nascida para dentro
Aí ficará até que a terra
Coma o resto que os homens deixam.


Há mulher mais bela do que eu?
Olhar doce
Azul turquesa
Abertos á força de rímel?
Olhos que não veem
Coração que não sente
Fotografia em movimentos...
Sobrancelha arqueada
Falta pouco para ser amada.
Caricatura, minha cara
Ranhura na moldura
Essa ruga
Não deveria estar aí
Se multiplica
Contra a vontade
No tempo gasto
Para não deixar
Aparecer o tempo
Me diga espelho meu.

E no meio das páginas, mergulhamos na sensualidade constante, desses seus poemas:

O corpo cede
Letras se sucedem
Um verso doido aparece...


A gente é só amigo
E de repente
Eu bem podia
Ser essa mosca
Perto do teu umbigo.

Faz de mim
Gato e sapato
Me desconcerta
Me conserta
Me espanta
Me aperta
Me acerca
Me alerta
Me espeta
Me deita
E seu poder
Mais alto
Se levanta.


Longe hoje
Você me quer para ontem
E só vem amanhã


...tocar você
E ver você sentir
O que tem de sal
No meu gosto de menina.


Assim que vi você
Logo vi que ia dar ciosa
feita para durar...


Depois que um corpo
Comporta
Outro corpo
Nenhum coração
Suporta
O pouco.


Depois do beijo
A dor na boca
Dá saudade...
Ruído de cigarro e palavras
Ainda escuto
O silêncio do teu beijo.


Teu corpo seja brasa
E o meu a casa
Que se consome no fogo
Um incêndio basta
Para consumar esse jogo
Uma fogueira chega
Para eu brincar de novo.


Topa um pacto de sangue
Com essa cigana do futuro
Que lê
O passado na tua boca
O presente no teu corpo
E nos teus olhos
Tanto quanto nos astros?


Antes que eu te deixe
Deixa eu dar um gole em você
Ficar de porre até o verão...


E por fim a dor que fica quando um amor se vai:


Vontade de ficar sozinha
Só para saber
Se você ia
Ou vinha
Quando deixou
Esse bagaço
No meu peito
Pedaço estreito
Defeito na mercadoria
Do jeito que você queria.


Não vá fazer
Besteira
Cachorro
Que cheira
Cada pé que acha
Procurando
Quem o queira

Todos esses poemas estão nessa encantadora obra que difícil seria não ganhar o Jabuti. Alice Ruiz carrega na mão o merecido prêmio por sua importante contribuição à nossa Literatura Brasileira e sem dúvidas, carrega também um pedacinho de nossos corações que ela sabe ler tão bem. Cigana da alma feminina, trapezista da vida que tem um olho sábio e sagaz para o mundo a sua volta.

Aqui ficamos então com esse gostinho de “quero mais” e orgulhosos de termos uma representante com tanta força em nossa Literatura. Alguém que não queremos que pare de caminhar nos caminhos oblíquos da nossa poesia, alguém que queremos dar a mão e andar juntos.