terça-feira, 20 de maio de 2014

O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS - Ricardo Flaitt


(Querida Daisy, que a poesia sempre coloque dobradiças nas retinas do dia a dia. Com carinho - Ricardo Flaitt)

O que dizer do “enxergador” do invisível e dessa sua obra que mostra todo o seu lado devorador dos sabores da vida?


Depois de quase cinco meses como Livro de Ricardo Flaitt nas mãos, revirando os silêncios encontrados que tanto falaram comigo e me acostumando com as imagens criadas pela retina do autor, não sei se ainda me sinto preparada para assumir tamanha responsabilidade de falar sobre uma obra, que reflete tamanha sensibilidade e que já nos impacta desde o início com a sua fuga do óbvio, com o seu olhar para as entrelinhas da vida e para o encontro da grandiosidade das coisas pequenas.

Mas, contudo, é preciso falar, porque esse livro não é daqueles que se lê e se esquece. Ricardo Flaitt, para mim, é um domesticador não somente de silêncios, mas também de palavras e isso nos remete obviamente a grandes ícones da poesia que se consagraram por usar a palavra como material de carpintaria; claro que falo de Manoel de Barros e Autran Dourado.

Confesso que minha queda por Barros é de longe bem maior do que por Autran, e posso me explicar: é que Barros usa a palavra como instrumentos de carpintaria de uma maneira acessível e apaixonante, o que muito me lembrou nesses passos de Flaitt a forma como se prestou a trabalhar as palavras.

Quero nesse meu espaço, pedir licença ao Flaitt e também ao Barros, para assinalar as similaridades que eu encontrei em suas obras no ofício de “poetar” o mundo. Muito me agrada essa sensibilidade do olhar para a “pequenez” das coisas, aparentemente desprezadas, insignificantes ou invisíveis, essa desconstrução da linguagem e a construção de uma metalinguagem como procedimento de reflexão sobre o poético. Portanto, é nisso que focarão minhas palavras.
Essa proposta de poesia vem sobre o olhar das novas transformações literárias, favorecendo a criação de uma lírica cada vez mais moderna, que acompanha os passos de um renovo nas estruturas poéticas, criando um novo sentido e desdobrando o sujeito sob diferentes “eus” e sua forma de enxergar o mundo.
Vejo Flaitt como um “devorador” do mundo, que utiliza a palavra como ferramenta para a reflexão sobre o poético e trazendo assim uma nova linguagem. Toda essa construção é muito moderna, onde a poesia se volta para si mesma, para sua própria linguagem que é a matéria que a transforma em arte.
Como tal, a poesia criada por Ricardo Flaitt, assim como a criada por Manoel de Barros, não se afasta desses traços contemporâneos. É um tempo de usar a poesia para reflexão e de auto-reflexão, que o poeta alcança, utilizando recursos como a metalinguística, criando um estilo muito singular de composição da sua obra, prevalecendo o “ludismo” da linguagem, o desdobramento do sujeito poético em diversos “eus”, a estética do fragmentário, e a exaltação constante do “nada”, das coisas insignificantes, causando profundas transformações na poesia moderna brasileira.
Assim, a palavra poética de Flaitt, não está presa em enquadramentos de fórmulas prontas, pois, sendo poeta moderno, prefere ser inovador e utilizar a linguagem que reflita também esse espírito. Conduz a palavra de tal forma, que nem todo leitor está apto para decifrá-la, a compreendê-la na grandiosidade de suas “pequenices”. Aqueles desgastados pelo social, repleto de preocupações e sufocados com as repetições do dia-a-dia, talvez não tenham a sensibilidade necessária para entender o falar de coisas que revelam o “universo do chão”, do nada e do próprio ser.
Flaitt é um poeta que mesmo orbitando uma metrópole, bate no peito o orgulho de ser do interior e como todos os nascidos em seu vilarejo, carregam a “doença da insônia” que também provoca o esquecimento e recorreu então à poesia para defender-se do esquecimento das coisas. Sorte nossa então!
Outro ponto em comum entre Flaitt e Barros é que ambos são poetas vivos e com uma poesia muito particular, diria quase visceral, que remete sempre ao que a maioria não se importa em dar importância e ao ofício de escrever.
E apesar de fazerem parte de uma época moderna, sua poesia foge dos padrões estéticos e estilísticos da literatura considerada moderna, pois a forma particular de conduzir a palavra os faz ainda mais únicos, produzindo com a palavra imagens singulares, construtoras de um mundo que a princípio, apenas o próprio autor enxergava e com tamanho detalhe que por meio de poesia, nos faz ver com a mesma nitidez o que não éramos capazes de avistar. Por isso os chamo de “carpinteiros” da palavra, fazendo artesanato com ela, nesse ofício que reinventa o cotidiano e o próprio Ser. Podemos perceber como Flaitt faz do uso da palavra um ofício, com alguns trechos poéticos de sua obra “O domesticador de silêncios”:
Iniciei-me para chuvas
[...]
Um vento fluvial ricocheteou no mineral
Chegando até minha pele
Repleta de fungos e lodos.
Assim chegaram-me líquidos
[...]
Flait, 2013, (Iniciei-me pras chuvas) p. 21.
Ou como podemos observar neste outro trecho:



         (imagem retirada do livro do autor)


Quando meninoera, tempo que sol era apenasfera,

Pedi ao pai um ferro de solda pra concertar dicionários.

Em minha fábrica demendas.

[...]
Flait, 2013, (O ferro de solda ou o metal de conjuminâncias) p. 23.
Esse seu tom poético logo nos remete ao poema de Barros chamado “Escova”, em Memórias Inventadas:
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras.
[...]
Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. BARROS, 2008 p. 15 (Memórias Inventadas).
Quando Manoel de Barros afirma que escova as palavras para escutar o primeiro esgar, significa dizer que ele lapida a palavra para estudá-la, já que era um estudioso da palavra e de suas significâncias e sentido.
Ao observar o trabalho dos paleontólogos, ele estabelece um paralelo metafórico com aquilo que ele mesmo faz o que provoca um novo efeito de sentido no texto. A ação de homens trabalhando, escovando ossos, a qual se insere no ser-evento real da vida, remete o autor ao seu próprio trabalho de estudioso da palavra, que também é árduo e delicado, à medida que ele próprio trabalha a palavra para encontrar seus diversos sentidos.
E retornando à poesia de Flaitt, encontramos similar posicionamento poético em diversos pontos de sua obra, “O domesticador de Silêncios” para percebermos claramente que em sua poesia é o lugar onde nascem as palavras em sua forma única, privilegiada, livres dos enlaces convencionais, pelas combinações inesperadas que o poeta consegue lhe emprestar. E o faz, porque é o seu ofício de usar a palavra como material de carpintaria:

 
                            (imagens retiradas do livro do autor)

Dependuro dicionários na varanda
E catraco marimbondos naspalavras
Pratrair ferraduras nos conceitos
[...]
E ficar fazendo curativo em significâncias.
Flait, 2013, (pracatracar) p. 57.
Ainda nesse sentido encontramos em seu livro:
[...]
Em minha oficina de inutilidades,
Invento parafusos pratarraxar imagens,
Brinco de parafusar o tempo,
[...]
Flait, 2013, (para (fuso) p. 83.
Continuamos a encontrar trechos pertinentes, que nos remete ao ofício das mãos, que requer suor do rosto, como o seguinte:
A moendar lavras de palavras encravadas no pilão.
Flait, 2013, (Monjolelétrico) p. 89.
Ou ainda mais:
[...]
Mas o que tenho de mais-valia
É coisa pequena, coisa de poesia
Que rompe coaestação,
Que sangra a margem do dia.
Flait, 2013, (Mais-valia) p. 93.
E mais pontual temos:
Marceneiro velho quer construir o vazio:
Empunha pensamentos ao invés de formões,
[...]
Recolhe chuvas nos silêncios dos telhados
Engarrafa fragmentos de solidão ao ver o mar,
Enterra, em meio às molduras dos quadros,
As perguntas que nunca mais vão lhe deixar.
[...]
Criam-se farpas no sonho do marceneiro.
Abrem-se fendas no nada que se desejou inteiro.
Flait, 2013, (Vazio de marceneiro) p. 109.
Seguidamente temos:
Arando os ventos
[...]
Desengaiolando gerúndios
Alimentando vírgulas
Transformando pontos em reticências
[...]
Educando o traço dos passos
Flait, 2013, (Visgo para caleidoscópios ou gerundiando) p. 113.
Noutro trecho do livro encontramos a poesia “Invertebramentos da palavra”:
Soletro minhas palavras invertebradas
[...]
Recortando asas de insetos e borboletas
Pra atingir os invertebramentos da palavra
Pra ficar acumulando sons de telhados,
Sentado em minha escrivaninha,
[...]
Flait, 2013, (Invertebramentos da palavra) p. 27.



           (imagem retirada do livro do autor)


Assim, o poeta busca redimensionar o universo das palavras, utilizando novos termos, des-contruindo a gramática, recriando a palavra, dando-lhe a luz, trazendo-a para um novo mundo. É por meio da manipulação da palavra que ele desconstrói o universo inicial dela, para inseri-la em outro ou mesmo transformá-la noutro universo, nesse seu trabalho de carpintaria da palavra.

Essas palavras se transformam morfo e sintaticamente para um objetivo maior, libertam-se das amarras gramaticais para construir-se em novas pontes a-gramaticais, destacando um novo sentido semântico e até neológico, ultrapassando as percepções comuns, rompendo com a forma usual da linguagem para criar um novo modo de ver e perceber as coisas, rompendo com a coerência convencional visando novas lógicas em amplitude poética.

Esse é o dever do poeta moderno, desfazer a palavra das amarras gramaticais que, em nada elevam a poesia e enquadram a arte. Abraçar o ofício das palavras implica tomá-la em estado natural e transformá-la em novos significados, criando novas perspectivas de entendimento.

É preciso não gostar de sua beleza óbvia apenas, ou seja, não prender-se ao seu formato denotativo, rígido, que não causa qualquer emoção ao leitor e tem o principal objetivo apenas de informar, de ser direta, seca, dicionarizada, mas sim, gostar da sua diferença, do seu avesso, daquilo que não se mostra a menos que se vá buscar que podemos traduzir por se apegar à linguagem marginal que se consegue com a lapidação poética, as construções diferenciadas das regras, tudo que nasce desse labor e foge dos padrões convencionais de leitura e escrita. Essa propensão pode ser entendida como “a-gramaticar a vida”, ou ainda, “aptidão a ser poeta”.
Ou seja, fazer um trabalho inverso à regra, para alcançar a “desconstrução” e rejeitando o tido como certo, para alcançar a “desorganização” do código oficial linguistico e criar outro, particular, que possa traduzir as emoções e a visão do mundo, de uma maneira que a forma denotativa jamais alcançaria.  
A poesia moderna vem desestabilizar a tradição literária, com o costume clássico de exaltar o belo, propondo novas significâncias, buscando a beleza do cotidiano, no comum, abusando da metalinguagem para instaurar os paradoxos, as dissonâncias, a nova forma do Ser.
A poesia de Ricardo Flaitt vem a representar de forma pungente e dedicada a poesia moderna, com seu olhar aguçado sobre a simplicidade, e com seu labor sobre a forma, na constante desconstrução da mesma, recriando-a, refazendo-a, realocando-a no mundo da literatura, universo onde tudo cabe, todo é possível, inclusive romper com a lógica do racional.  
Percebemos que é pelos desvios que se encontra a linguagem poética, é preciso criar atalhos do caminho regrado, àquele que todos tomam, é preciso ser diferente dos demais para encontrar as melhores coisas, ter as melhores surpresas pelo caminho.
Nesse “re/fazer” da linguagem, Ricardo Flaitt muito nos faz lembrar também, Guimarães Rosa, no “desarranjamento” das palavras, da ordem semântica e morfológica delas, criando uma nova percepção do mundo poético. É a arte de poetar, transfazendo o mundo, no estilo tão singular do poeta, que mal chegou e já vem deixando grandes coisas pelo caminho e “dendagente”.







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